17 de agosto de 2008
















Pedra Retorcida por
Alexandre Gusmão


PERSONALIDADE POÉTICA

por Ruy Espinheira Filho






Escrevendo, em 8 de janeiro de 1944, a João Etienne Filho, que era um dos seus jovens admiradores de Minas Gerais, dizia Mário de Andrade: “Ora você ou se acredita poeta ou não: a decisão tem de ser de você. Se se acredita sim, tem de publicar e esperar o veredito humano dos outros. (...) Faça a experiência dura, Etienne: se publique em livro.”
Não há mesmo outro caminho. E é preciso muita coragem para aceitar o desafio. Muito caráter para enfrentar a dureza da experiência. Virtudes que não faltam, evidentemente, a João de Moraes Filho, pois aqui comparece ele com Pedra retorcida, seu livro de estréia como poeta.
No caso dele, porém, há mais do que as virtudes da coragem e do caráter: a percepção e o sentimento da poesia. Quer dizer: João de Moraes Filho não só é capaz de perceber o fenômeno poético como o sente em si com profundidade. Em quase todas as suas composições, mesmo nas mais breves e leves, ouvimos soar a voz desse sentimento. Voz oriunda daquela emoção recolhida em tranqüilidade de que falava Wordsworth.
Todo mundo é passível de enganos, mas, no caso, lendo as páginas de Pedra retorcida, creio não me enganar ao achar que estou diante de manifestações de um poeta. Aqui está a memória traçando seus registros e suas fábulas. A meditação serena. A ironia soprada pela consciência da condição humana. As cintilações e obscuridades próprias das epifanias líricas. O volume já se inicia exibindo todas essas riquezas em apenas quatro versos, no poema “Repare”:

Onde eu sou
descansa um silêncio,
e um moço fazendo círculos com pedras
na beira do Rio.

O Rio é escrito com maiúscula, o que intensifica a referência, mas poderia ser escrito normalmente que nada se perderia na expressão lírica. Drummond escreveu certa vez que era apenas “um homem pequenino à beira de um rio.” Na verdade, num certo sentido, é o que somos todos nós — pequeninos diante do que seja, rio ou mar, poderosas metáforas do Tempo, da brevidade da vida e das profundezas e enigmas da alma... Poema de apenas quatro versos, mas repleto de sugestões infindáveis.
Jovem, iniciando sua vida de escritor, João de Moraes Filho ainda não explora muitos recursos da expressão poética, requintes da técnica, porém afirma o mais importante: uma personalidade. Notamos as influências (e só os que não leram nada não recebem influências), mas sua voz é própria e é autêntica a emoção que suscita. Enfim, repito, não creio estar enganado em considerá-lo poeta.
Referindo-se, em artigo de 1865, ao jovem Joaquim Nabuco, Machado de Assis escreveu: “Tem o direito de contar com o futuro.” Digo o mesmo a respeito de João de Moraes Filho.


Lauro de Freitas, 7 de junho de 2004.

O fugitivo de Holanda


por Narlan Matos


Quanto lê-se Pedra Retorcida, de João Wanderley de Moraes Filho, impossível levar o estribilho “o vapor de Cachoeira não navega mais no mar” a sério... Porque o que navega não é o vapor, mas Cachoeira. ‘ Parte de mim um trem com destino ao sertão daquele rio.” O poeta é feito de dois continentes incontinentes.
Por certo “se tivermos sorte haverá tempo para o amanhece”, “já que a noite de agosto não é mais aquela estreita e quita.” As palavras ricocheteiam sem mim entre as duas serras.
Poeta nasce de si, só, na clave de sol na clave de dó. De tudo ao redor. O poeta nasceu na Rua do Riacho Pagão os as setas dos demônios azuis da noite, desde sedo, transforma seu amanhecer numa tarde insurpotável da vida inteira. “Vai o tempo batendo nas folhas arrancando o segredo das pipas”. Por isso, só é poeta quem não sabe voar. Vai João do Riacho Pagão ser pipa na vida.
“um silêncio ressoa cá dentro talvez uma faísca infantil calasse o risco da margem esquerda dessa mão”. É por dentro de si, pelos rios correm nas linhas das mãos que andam os que sabem onde a poesia se esconde, se perde. João de Moraes Filho, sabe disso como se tem que saber. Está cheio do que lhe preenche. O que traz consigo pesa tanto quanto um cais que todos os barcos à sua mão presos, prisioneiros, amarrados. Seus poemas são os barcos que jamais partirão ou que partiram e não mais voltarão.
Seus poemas lhe chegaram na invasão de 1624, nas naus holandesas afundadas no Rio Paraguaçu. Ele veio nas duas invasões, como canhoneiro. Em Cachoeira e no Recife. Depois morreu de novo.
“Onde eu descansa um silêncio”. Isso talvez porque a descendência de Hollanda remonta de sua família paterna, provinda de Recife, já lhe tenha inquerido: ou o porto de Cachoeira ou o porto de Roterdã. E agora João Van Der Ley? Batavo ou batido? Flamengo ou flamingo? Ele responde: “exilado fujo em barquinhos de papel jogados em dias de chuva no filete de uma lágrima”. “Do alto da igreja de onde as torres são mais altas se despenca um milagre” O milagre da poesia acontece.
Assim sendo, Pedra Retorcida vem de outros rios, de outros portos, de outras arrebentações distantes, de outras docas, mais profundas que essas que lemos à tona das palavras.
É nessa terra do sem fim que nascem os que renovam a poesia brasileira, que ressoam os brados retumbantes de que se fazem os verdadeiros bardos.
Eu te batizo João do Riacho Pagão, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo! Mas a água benta jamais te livrará do pecado original.

Poemas do livro Pedra Retorcia

Passeio interior
a Mônica Vargas, Iaromila.




A noite em agosto
não é mais aquela estreita e quieta
das ruas desconfiadas daquela infância.
Não há janelas seminuas
nem boa morte de segredos adulterados.

Parte de mim
um trem com destino ao sertão daquele rio
que já não me possui.

Outra parte me retalha
nesses paralelos de chão espalmados
que cortam em cruz
a Rua da Matriz
e a casa de n.º 13.

Se tivermos sorte,
haverá tempo para o amanhecer.


Convergência de um murilograma cachoeirano


Os livros que não li
costuram infâncias cor de velas apagadas
e esse poema me persegue
infantilmente pela Rua do Riacho Pagão.

Grifou-me apenas,
não o escrevi.


Expresso no rio sem flores
A Gayacu Luiza de Oya




Nessas tardes
em que se passeia
por um jardim sem flores, o rio
é o que os olhos daquela mulher desejam.

Santo Amaro anuncia
algum doce de cana
nos cantos malandros
dos olhos daquela mulher.

E cai tanto vento
nos ouvidos
que a escrita é ardida
nessas tardes em que se passeia
pelo interior.

Mas o rio desce
goela à baixo
no Vale do Paraguaçu,
onde tradição não evolue
e quem vive latindo morre cachorro.

Nenhuma canoa
ousa rasgar as águas doces
do menino Moisés.

Dessa vez, os atabaques
do Mané Vitório o carregou no colo.

O riso dele era um riacho
onde Oxum se espelhava
cantando.

Que se abra então a Terra Vermelha
em lampejos pipocados no céu,
de felicidade
de qualquer coisa que se vista
com as cores daquela bandeira
grudada no suor
de nossa memória.



Oferenda
A Luisa Mahin




Quando as velas
não se apagam,

e teus olhos se aproximam,
esse brilho nos resolve.



Engenho Vitória



Um silêncio ressoa cá dentro.
Talvez alguma faísca infantil
calasse o risco da margem direita dessa mão
calejada em favor do tempo.

Chamam caminho,
a queimadura esticada no chão
de um canavial verde cinza renovado.

Não que se queira,
mas esse cheiro fumacento de labuta
não escolhe estações.

Repare





Onde eu sou
descansa um silêncio,

e um moço fazendo círculos com pedras
na beira do rio.


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Acabam de desfragmentar a memória
que deixa de nascer.
Não tenho a certeza de todas aquelas mãos,
mas as conheço de perto.

Aquela mais grossa e rude
sabia lidar com coisas do chão.

A menos branca e mais de minha cor
é flor da Terra Vermelha,
casou-se com a rudeza de mão grossa,
que a despetalou pacientemente.

O que resta chove
nas folhas em branco
de alguma vida adulterada.


Projeção cachoeirana em 16 mm





I
Por baixo dos tapetes
escorrem versos cadenciados
de rotina concreta,
enquanto o ano encerra quatro estações.

II
Lá fora, a procissão carregava um corpo nu
sem códigos de barras nem etiquetas azuis.

III
Exilado,
fujo em barquinhos de papel
jogados em dias de chuva
no filete de uma lágrima.

IV
Olhando em janelas
lembro das felicidades,
Baudelaire, Narlan,
aquele homem no bar do horizonte
com braços abertos e a felicidade do mundo,
num milagre antecipado.

V
Todos os sóis nascem pontualmente
em portos de margens estreitas
no exprimido das cidades.

VI
... fujo fingindo-te amor
para não morrer dizendo não.


Freeway despercebida





A moenda do tempo
debruia estações no canto esquerdo da calçada
cuja cor verde lembra algum Brasil.

Formigas marcham sem detalhes,
entre prédios e flashes de TV,
com suas folhas quase verdes, quase bandeiras...

sob o vazio da retina
que atropela a noite.


Pedra Retorcida





Durante algum tempo
hesitei abrir aquela porta.

O sentido de toda cidade
estava atado, como um nó,
lá dentro. Talvez fosse
o que jamais procurasse:
o sentido das coisas
explicadas por trás das portas.

Algumas Ruas também
hesitei atravessar.
Eram incansáveis e longas,
como as noites brincadas,
lá fora, onde tudo mais cabia.

Em verdade,
nada procurava
além de um pequeno gole
guardado ou esquecido
por trás daquela porta verde:
sem trancas, maçanetas e levemente arranhada
com a dor de abri-la.

Os olhos esverdeados
acompanhavam a inquietação do vento
se infiltrando pela porta exilada
como quem fala: oh de casa!

(As Ruas atravessam o tempo não vencido).


Aquela porta que hesitei abrir,
abriu mão de sua fronteira
e deu lugar a janelas
que me assombram pacientes
até que o frio as feche novamente.

Faz frio por detrás das portas retorcidas;

o outro nos decifra
enquanto se esconde.



Marcha soldado
ao Sine Calmon,
sem redundâncias





E o tempo gastaria horas
nos olhos do menino,
procurando entender
a leveza dos pêndulos
e o peso das pálpebras,
piscando, depois de um dia
na estação de transbordo,
onde de tempo em tempo,
passam desatinos variados
de quem sai e de quem chega
pra seguir o ponto final.

- Nada que nos enfrente,
nadinha mesmo.

Esperneiam até.
Mas é inevitável o tempo piscar de leve
em nossos olhos,
sentir a miopia das horas
tão incansáveis
apurando o equilíbrio.

- O tempo, menino,
esperneia, como nada,
nadinha mesmo.

Nada que nos enfrente.




Tijolos
ao Mister Nascimento




Homens inquietos,
máquinas barulhentas,
o mundo cresce em círculos;
e na biblioteca alguém borboleteia pernas.

Leva o vento
a folha quieta e vazia
de um quê cinzento
angustiado e lento.

Um menino pergunta ao senhor de barba
de que as horas são feitas,
um bigodudo que anda em trilhos se antecipa:

De pontos e ponteiros
marcando e finalizando
o tic tac do corre-corre,
porque amanhã ainda não será outro dia.



Nódoa
ao Edmar Ferreira




O homem tinto
rabisca a mão no poema em repouso.
Minando leve o cortar do papel,
o gatilho resolve atendê-lo.


Estampido
à Rebeca Iene Dias




Na estante,
algumas palavras sujas
e uma tinta quase seca de tumultos.
(um homem rabiscava a porta
ofuscada em algum canto da sala.)

No quarto crescente,
escapolia da vitrola um Don´t let me down
que exilava em nossas mãos
impressões de mirra
e outras dores.

Sobre o mármore da janela,
se rompia, castigadamente, um cactus com flores amarelas.

De repente,
há urgências de escrever coisas sérias.


Bem pregado





Minhas vergonhas
não estampam as páginas da Playboy:
exclusivamente, cobrem um rosto suado.

Nossas páginas grifadas
se descolam em outras folhas,
úmidas, talvez margeada de amarelo.

Invento itinerários
como aquele do menino que passa,
desconhecido pela mesma pena,
pele e tinta dos olhos.

Nessas páginas
não cabem mais nada,

além de uma mão suja
manchando uma folha branca

e um sorriso de criança
na cruz carregada no peito.


Máximo





Deus
é
o
espelho
que
o
homem
precisa
quebrar.


Invernia das flores
(em apenas I Ato)





Desfolha o outono uma sombra,
riscando o vento no chão.



Cartografia de um náufrago





Há pouco aqui por dentro:
uma mulher que cala,
um amor órfão,
que desce suave pelo ponteiro das horas,
uma flor caída,
e todo sentido preso em garrafas vazias.



Himens retorcidos rasgam botões de rosas





Resvala um detalhe inútil e corriqueiro
na passagem interrompida de uma fotografia.

Um poema virgem sobre a pedra
sopra invisível o sabor que rompe o dia.



Alegro noturno
(um Poema de Cecília Meireles)




Seis vezes estilhacei
essa canção noturna
e nenhuma voz me canta
com tua clave de Sol.

Tua imagem a bico de pena
sob a caneta levemente dolorida
aponta aos olhos do sacrofício ...

enquanto meus dedos prolixos
desconcertam medos maiores.




Coitado
a Nadja Rossine



Essa tinta
quase seca
traga o livro
precipitado
do castanho
desses olhos.


Textos sobre Pedra Retorcida

Poesia, isto.

Por orlando pinhº. - Poeta



do silêncio: a surpresa. mais silencioante o surpreendente. não necessariamente
erudito, mas, essencialmente sutil.
o poeta tem a memória afetada por sua imaginação em estado de liberdade e
descoberta.
instantâneos: o cotidiano em transfigurada transfusão de sentido.
revelações do impermanente estado: tradutível ali apenas pelo olhar daquele poeta,
aquele olhar, o que for de sentimento de mundo.
umas lírico-trágicas, gasosas, paisagísticas, urgentes, sentimentais, humanísticas...
sempre desconcertando o prosaísmo de nossas vidas bestas. sobre pedra retorcidas.
a esfera do incomum da atmosfera do comum: poesia, isto.
esta é, para joão de moraes filho.
uma escritoleitura.

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A revelação da poesia


Por José Inácio Vieira de Melo



Enfim, dá-se a estréia de João de Moraes Filho, poeta das plagas cachoeiranas. “Pedra Retorcida” é o nome da pedra inaugural da lira desse jovem poeta. Dividido em cinco partes, o livro faz um périplo pela vida do autor, ancorando por todos os portos, mesmo àqueles mais recônditos, “à procura da forma da beleza”, como nos ensina o lírico máximo, Affonso Manta.

Na primeira parte o poeta faz um “Passeio interior” e rememora a infância, aliás, característica essa que perpassa todo o livro, e sente o gosto de quietude daquele tempo auroral, e banha-se no rio de pureza que já não há mais. Mesmo assim, continua a seguir pelo caminho da infância – é nesse lugar que se funda o ser, e é de lá que traz o néctar com o qual compõe seus versos. Da infância, vem marcado, grifado pela Musa e amalgamado a ela (“Convergência de um Murilograma cachoeirano”). João de Moraes compreende que só o tempo é capaz de arrancar o segredo das pipas (“Bate folha na mata escura”) e, silente, só ele, o tempo, é capaz de quebrar a leveza do silêncio. O poeta segue seu itinerário, onde houver luz, por mais tênue que seja, deixa-se alumiar e é todo uma “Oferenda”:

... Quando as velas
não se apagam

e teus olhos se aproximam
esse brilho nos resolve.

A segunda parte é um “Concerto marginal para meninices”, no qual alça vôo no solfejo de um passarinho: um ferreirinha libertário, que veste os pés do homem/poeta com as lembranças de um menino descalço. O poeta sonha com um milagre anunciado pelos sinos da igreja, e sua alma pássara suspira um “Madrigal”:

Quem dera os homens
fossem animais de bico.

“Pedra Retorcida”, terceira parte, é o êxodo do poeta para a cidade grande, essa cidade que é um mar de portas. Abri-las não é tão difícil, difícil é suportar o que elas revelam, então, hesita, pois aquela porta à sua frente encerra descomunal pedra retorcida – os abismos do poeta:

o outro nos decifra
enquanto se esconde.

João entende os códigos do silêncio e, por isso, respeita, como o bardo Adelmo Oliveira, “o silêncio em que flutua a lua”, irmanados que estão no sentimento, e, então, estampa “O segundo brasão do esquecimento”:

A lua
estreita
e quieta
passa por mim.

Desconfiado,
não faço perguntas.

Em “Pequeno espelho de bolso”, quarta parte do livro, João não perde de vista o interior – lugar e ser. Seu canto busca o instante original de cada passo da tessitura poética, fazendo uma catarse da existência, cuja representação se dá “no pequeno espelho de bolso”, que traz e “que nos inventa distraidamente”.

Na quinta e última parte, “Invernia das flores”, João manifesta afinidade com os ritmos da lira da nossa poeta maior, Cecília Meireles: “Leve é o pássaro:/ e a sua sombra voante,/ mais leve”. Assim, investido e revestido de tal leveza, vislumbra no castanho da menina dos seus olhos a “Invernia das flores”, e funda seu canto:

Desfolha o outono uma sombra,
riscando o vento no chão.

Em “O arco e a lira”, Octavio Paz afirma que “O poema nos revela o que somos e nos convida a ser o que somos”. João de Moraes filho, com “Pedra Retorcida”, dá demonstração de ter compreendido a lição do mestre mexicano, pois, uma vez revelado o seu destino pela Musa, prontamente vestiu sua indumentária de poeta e saiu, despido de coisas vãs, mundo afora, a proclamar a verdade que consagra: a graça maior da poesia.


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A poesia retorcida de João de Moraes Filho
Por Cleberton dos Santos*

João de Moraes Filho
não só é capaz de perceber
o fenômeno poético como o sente
em si com profundidade.
(Ruy Espinheira Filho)

Pedra Retorcida (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2004) é o livro de estréia de João de Moraes Filho (Cachoeira, 1977), um dos vencedores do Prêmio Braskem de Literatura 2004. O prêmio em sua 9ª edição representa um dos mais importantes veículos de descoberta e divulgação de novos autores da literatura baiana e já revelou nomes como Narlan Matos, Sandro Ornellas, Adelice Souza, Fabrícia Miranda, Tom Correia L. e este ano Vanessa Buffone. Promovido pela Fundação Casa de Jorge Amado, esta premiação literária desempenha relevante papel na vida cultural do estado da Bahia.

Pedra Retorcida, reunião de 35 poemas líricos divididos em cinco partes intituladas “Passeio interior”, “Concerto marginal para meninices”, “Pedra Retorcida”, “Pequeno espelho de bolso” e “Invernia das flores”, tem apresentação de Ruy Espinheira Filho e ilustrações do artista plástico Alexandre Gusmão. Este livro traz a força de um jovem poeta que procura incansavelmente pela voz silenciosa da poesia no mistério das coisas simples. Em alguns dos seus melhores textos, João de Moraes Filho faz uso das experiências de ávido leitor, das memórias infantis e das vivências culturais no recôncavo baiano para realizar uma poética de autêntico e pungente lirismo.

Através de um jogo intertextual com outros escritores, nosso poeta exercita sua capacidade de reler e recriar a poiesis na esteira da tradição literária brasileira. No poema "Convergência de um murilograma cachoeirano" (p. 21), o sujeito lírico estabelece sua comunicação surreal até mesmo com o não-lido:

Os livros que não li
costuram infâncias cor de velas apagadas,
e esse poema me persegue infantilmente pela Rua do Riacho Pagão.
Grifou-me apenas,
não o escrevi.

Já no poema-título "Pedra Retorcida" (p. 51), encontramos o símbolo da cidade-esfinge que nos espreita por trás das portas retorcidas, onde o outro nos decifra, enquanto se esconde:

Durante algum tempo,
hesitei abrir aquela porta.
O sentido de toda cidade
estava atado, como um nó,
lá dentro. Talvez fosse
o que jamais procurasse:
o sentido das coisas
explicadas por trás das portas.

A imagem da rua serve de fio condutor para suas reminiscências infantis. É o caso do poema "Passeio interior" (p. 19), título sugestivamente paradoxal, no qual o eu lírico propõe-nos um passeio metafísico pelas ruas do ser, realizando um movimento de deslocamento temporal-espacial que parte da cidade real, que circunda o poeta, com destino à cidade memória, forjada na imagem das ruas de outrora:

A noite em agosto
não é mais aquela estreita e quieta
das ruas desconfiadas daquela infância.
Não há janelas seminuas
nem boa morte de segredos adulterados.

Aquele silêncio que ressoa dentro do poeta, talvez alguma faísca infantil, transformou-se em plena linguagem estética que tenta “comunicar a experiência complexa que a vida lhe transmite”, como já disse o poeta Ferreira Gullar (Indagações de hoje. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.).

Retorcendo todas as palavras, inclusive aquelas sujas pela poeira do cotidiano, João de Moraes Filho emaranha-nos em sua incandescente teia metafórica, altamente consciente de que:

Inevitavelmente,
alguma felicidade amanhecenuma claridade anil,
e algumas flores se desatam.
(“Guardado para uma flor-de-lis”, p. 85)
*poeta, crítico literário e mestre em literatura na UEFS. clebertonpoeta@bol.com.br 25/08/2005